segunda-feira, março 03, 2008

Daniel parou junto às escadinhas da igreja de S. Roque, tirou o chapéu e limpou o suor que, apesar de ser um dia frio, se começava a formar na testa, após a escalada desde a baixa pombalina, passando pelo agitado Chiado e pela garbosa estátua ao poeta maior de uma era que já não volta. Consultou o relógio, eram 8:25. A cidade estava agitada, como era normal num qualquer dia de semana. Almeidas varriam as ruas com pesadas vassouras, ardinas infantes vendiam as edições d'O Século e do Diário de Noticías. Um polícia de bigode farto e preto olhava para duas meninas, desgranhadas e sujas, com os seus vestidinhos de flanela grosseira que saiam do Bairro Alto em direcção à ribeira. Velhas envoltas em velhos xailes de velha malha e inválidos bêbados esmolavam à entrada da igreja. Carroças passavam em fila, carregadas, sabe-se lá com que matérias vindas do cais, tendo as fábricas como destino.
Daniel alisou as rugas do sobretudo cinzento causadas pela subida, consertou os galões de tenente e colocou o chapéu de volta na cabeça.
Um dos mendigos, um homem cujos anos não tinham sido meigos, um homem em que a perna esquerda não passava de uma querida recordação dirigiu-se-lhe:
-O meu tenente não dá uma esmolinha a um soldado que perdeu uma perna às mãos da pátria?
-Onde é que deixou a perna, homem?
-Ficou na França, meu tenente, em 1917! Nas mãos de um médico inglês... foi a ultima vez que a vi...
-Como é que isso foi? - disse Daniel retesando-se para não mostrar qualquer sentimento.
-O sargento da companhia disse que tinha sido um "estrilhaço", ou lá como se chama, de granada. O meu tenente dá ou não uma esmolinha? Sabe, a última coisa que meti ao estômago já foi no dia antes-de-ontem...
-Tome lá homem - Daniel tirou do bolso umas moedas
-Mérci mensiór, mérci! Pome-terre por moá!
Quando o homem se afastou, Daniel comprou O Século a um garoto, esperou que um electrico passasse e atravessou a rua. Seguiu até ao cimo da rua, onde o jardim de São Pedro de Alcântara ficava e aí contemplou a cidade da carreira das Índias sob aquela luz matinal. Viu a colina da Graça, com a majestosa igreja branca no topo, composto por árvores e bonitos edifícos. Percorreu com os olhos a colina do castelo, do imponente e reverendo castelo que todas as manhãs abençoa a cidade. Alfama dos sapateiros e das varinas, dos marinheiros e dos fadistas. Hà quanto tempo não ouvia um fado... África fizera-lhe tanto mal, tornara-o alguém que ele nao conhecia. E então pensou nela, em Margarida. Tinha-a visto pela ultima vez à dois anos atrás, antes de partir para Angola, com o seu regimento. Os seus cabelos de um castanho claro, com pequenos canudos, os olhos castanho-esverdeados e a sua tez clara tornavam-na impossivél de esquecer. Tinha um corpo aparentemente frágil, mas onde escondia um vigor inemaginável, só capaz de ser liberto através do calor da paixão, que Daniel descobrira em certo picnic na serra de Sintra, já distante no tempo, mas não na sua memória.
Sentou-se num dos bancos do jardim. Ele sabia que ela vinha à missa todos os dias àquela igreja e esperou. Abriu o jornal, mas de nada serviu. A espera tinha sido pequena. Ao cimo da rua ela apareceu. o Coração de Daniel bateu com mais força que nunca. Era ela, sem dúvida, era ela num vestido verde comprido, com um sobretudo verde e um chapéu também verde com uma pequena pluma verde. Era Margarida, acompanhada da sua mãe.


(Os nomes das personagens e os factos descritos não possuem qualquer ligação a tipo algum de realidade. Logo nada de se porem com ideias camelas!)